domingo, 7 de agosto de 2011

Essa frio de Agosto

        
       Ainda há pouco fiz menção de me aproximar das janelas.  Observei o modo como o vento ondulava entre as cortinas e detive-me um instante para adentrar o mistério daquele momento. Afastei-as de par em par e esperei que ele me soprasse o segredo. Brandi as mãos nas grades descascadas e tentei  impedir as lágrimas de ferrugem que se derramavam como uma nascente de  bronze líquido às margens das vidraças. Senti que a mão anônima do vento me acariciava. Pousou em meus cabelos, rosto, lábios e parou ao lado esquerdo do meu peito. Eu, paralisada, assenti em silêncio. Fechei os olhos e deixei que suas mãos fizessem o percurso, fantasiando que, se eu apurasse os ouvidos escutaria os seus sussurros. Abri os olhos para vê-lo. Tinha a forma de uma miragem a vapor que parecia solidificar-se na penumbra. Deteve-se sobre os meus olhos como um espelho, como se quisesse saquear-me a imagem. Nossos corpos se encontraram no reflexo. Lembro-me apenas que mergulhei naquela miragem a vapor, sentindo um frio que me penetrava com ardor, explodindo-me por dentro. Enfeitiçada, a miragem a vapor transcendia-me.  Não sei dizer se chorei de dor, de medo ou de fascínio. Senti uma paz estranha me envolvendo. A dor havia sido substituída por uma maré de luzes e cores que me cegaram por um  determinado tempo. Abri os olhos. Tentei me levantar, mas caí para trás, embriagada. Adormeci sob a penumbra violácea da madrugada, sentindo na pele um frio intenso, mas que, estranhamente, aquecia minha alma. Na manhã seguinte, quando a luz do sol fuzilou as vidraças, abri os olhos e vi a mim mesma flutuando como uma pena que escapava com sanha pelas fendas da janela. Consultei a consciência na expectativa de que ela tivesse uma explicação razoável para o que tinha me ocorrido naquela madrugada. E como  eu imaginava, ela foi incapaz de articular qualquer palavra. Olhei em volta e senti um vazio imenso me apunhalando pelas costas. Amanhecia o dia primeiro daquele mês assombrado do qual nós dois nunca  falávamos. Agosto havia entrado pela ponta dos pés, e,  aquele mês que só vivia no calendário, estava de volta para fazer seus talhos na madeira cinzelada da memória. Em plena luz do dia, vi o fio de sua navalha lamber a ferida  e uma nuvem vermelha de sangue se espalhou lentamente sobre a minha testa. 
               A oceânica certeza que a luz da realidade havia despejado sobre aqueles dias, começava a refluir em meus olhos, marejando-os de lágrimas. Olhei para o céu tentando buscar no azul celeste de seus olhos a razão destes muros cada vez mais altos que as distâncias tem levantado. O dia, deslumbrante, parecia um espelho brilhante a refletir a alma curvilíena da cidade, que, letargicamente, naufragava entre as luzes. Como eu havia previsto, a tarde transcorreu como uma ilusão. A noite caiu como um vidro que escapa às mãos para satisfazer aos caprichos de alguma distração. Levantei os olhos para o céu como se quisesse encontrar alguma resposta ali deixada. Olhando-me sem piscar, as palavras entram em órbita dentro de sua boca, e o céu, emocionado, não foi capaz de dizer nada. Naquela noite, por alguma razão, as estrelas não tremeluziam sobre o pano negro e sem fundo do infinito. Eram apenas pontos cegos de uma trilha celestial que dava para lugar algum. Perguntei-me se eu havia perdido a noção do tempo, ou se ele teria sido tão sensível ao meu sofrimento, que não passaria por mim, assim, apenas para me recordar que a minha vida estava passando. Agradeci ao tempo pela compreensão que teve ao não condicionar-me ao relógio do mundo. E agradeci, sobretudo, o fato de ele não se limitar a pedir que ao final do expediente de cada  segundo, cada minuto, cada hora e cada dia trabalhados, o relógio batesse quantativamente o seu ponto, para obrigar-me a ajustar o meu tempo interno ao da percepção do universo. Se o fizesse, certamente chegaria à conclusão de que o desperdicei para muito além do que calculo. Acabo de sair de uma dieta forçada de isolamento. E sabe o que fiz em todo esse tempo? Eu corri. Fantasiei que, se eu não olhasse para trás, que se eu corresse, que se eu não parasse de correr, que se continuasse correndo, ficaria fora de alcance o bastante para não ter que escutar os gritos surdos do passado. Quando estava quase chegando ao meu destino de nada sentir e nada esperar, quando achei que tudo à minha volta havia silenciado, a certa altura o ar me faltou. Parei um instante para recuperar o fôlego. Lembro que senti alguma coisa me comprimindo o peito, e fosse o que fosse, estava doendo. Expirei e inspirei como se quisesse e pudesse recobrar o juízo dos pulmões, tentando imaginar onde eles estavam com a cabeça ao me negar o ar que eu precisava para respirar. E foi ali que me lembrei.  Os pulmões se expandiram como se quisessem libertar-se da prisão sufocante da carne. Em resposta à minha falta de ar, vieram um mar de sentimentos que me correram bem dentro. A onda crescia vertiginosamente e aquelas águas antes, represadas, dominadas, encoleiradas, arrebentaram com valentia as comportas do meu peito. Eram sentimentos.         
               Os mesmos que sufoquei aqui dentro. Em minha corrida, saí tão obstinada a tomar distância dos fantasmas, que não notei antes de sair de casa, que a imprevisibilidade do tempo anunciava ventos fortes, trovoadas rancorosas e tempestades descontroladas. E a previsibilidade do meu coração não escapou às conseqüências. Como prêmio de consolação, restaram embarcações viradas, lemes e hélices ondulando na maré alta, e, sobretudo, minhas memórias, rebrilhando sob a face trêmula das águas. Ali compreendi que algumas coisas são imorredouras, e, esta característica trás consigo a prerrogativa inarredável do escape. A embarcação do meu orgulho foi virada e atirou-me neste mar aberto. E confesso, as águas são frias ao extremo.
Estou em alto mar e agarrada a uma taboa de madeira, de onde fantasio que converso com você e contemplamos o pôr-do-sol da janela do meu quarto, único lugar do mundo onde podemos ficar à salvo, e sopro aos seus ouvidos estas palavras esculpidas nas rochas do meu duro silêncio. Eu menti quando disse que não sentia mais nada. Eu menti. Em minha defesa, posso alegar que esta foi a única que você escutou de mim. A nevasca do século está se aproximando. Nos ventos de agosto, o frio  vai lhe acariciar o rosto como se quisesse descobrí-lo novamente em um sopro. E eu sei que dentro em breve, o frio vai congelar tudo, até as lembranças do último verão que passamos juntos. Sei que o gelo vai fazer arabescos nos cantos dos vidros, e que você vai tentar dissuadi-lo com as pontas dos dedos. E sei também que será impossível. É para aquela praia de areias incertas que o passado que invariavelmente nos transporta. E à distância do que já não somos a solidão crescerá como  as ondas que arrebentam todas as noites naquele farol. Se escolher o destino de sentinela, a casa do farol vai se tornar uma miragem de silêncio entre os rochedos, e esteja certo, assim como a sua solidão, ela vai aumentar de tamanho a cada inverno. Mas se mudar de ideia, eu ainda estarei por perto. Sufocar os sentimentos. Foi esse o nosso erro. Quando pensei que, fugindo do meu passado eu pudesse evitá-lo, ao final da maratona, era ele quem estava à minha espera na pista de chegada para cortar a faixa.  E não foi da vitória. O coração - nunca duvidei que fosse morrer em suas mãos. Contudo, voltar atrás e assumir que compartilhava a mesa com um fantasma não foi o que me doeu mais. Atravessei desertos de papéis para alcançar o nosso extremo. E o que encontrei foi apenas um sopro de fantasia nesta nevasca de realidades, que não tardará a nos cobrir por inteiro. Fui desintegrada da crença sólida de um todo, que sequer chegou a ser parte. No tempo, fui só eu quem tinha parado. A vida lá fora, indiferente, havia continuado. E pode  manter a distância que quiser. Não vai dar certo. Eu sempre sei quando você está por perto. Ainda  penso que o destino seja um truque da memória à espera de que  possamos descobrí-lo. Não posso acreditar que seja só eu, quem tenha ficado, para sempre, na memória daquele verão. Não (...). E não tornei a vê-lo. Mas todas as noites, às escondidas, enquanto ele dormia eu fugia com a sua alma entre os dedos. 

Lidia Martins
Ps:Conectada com a Lidia...